Nasce-se no fado? Ou nasce-se para o fado?... Sara Correia nasceu em Chelas, ali nos
inícios dos anos 90, e, como qualquer outra pessoa que tenha crescido num bairro
popular, o fado era bálsamo diário para os seus pequenos ouvidos, banda sonora de uma
vida normal e tranquila que despontava nos cafés ou nas janelas abertas do bairro, na
voz de quem trabalhava ou nos rádios dos carros que por ali passavam. O fado começou
por ser, de facto, a sua casa.
Em 2023, Sara abre, precisamente, as portas dessa sua casa e celebra a sua Liberdade,
contando, uma vez mais, com Diogo Clemente como produtor, mostrando o mais fundo
de si num novo álbum em que dá voz ao que o seu coração grita, em que canta histórias
e lugares, emoções e sonhos. Vidas. A sua e a dos que a rodeiam. “Chelas” é o primeiro
sinal de um trabalho que volta a tomar impulso na tradição e a abraçar o presente
convocando o talento de Pedro Abrunhosa e Joana Espadinha, de Carminho, Tiago
Bettencourt ou Carolina Deslandes que escreveram para a voz de Sara Correia porque
lhe conhecem a história de vida, porque já a viram na sua intimidade e percebem o que
a apaixona.
Para chegar a este presente, no entanto, Sara calcorreou um longo caminho que, com o
tempo, se foi abrindo a capítulos importantes, fazendo-se de muitas viagens e de várias
conquistas. Mas Sara mantém-se humilde: “sinto-me feliz”, diz ela. “Sinto-me feliz e
cheia de vontade de continuar a avançar, mas não esqueço nenhum dos passos que me
trouxe aqui. Sei bem de onde venho”, explica ela com desarmante honestidade.
Respondendo à questão inicial, é a própria Sara Correia que reconhece que há uma
grande diferença entre cantar fado e ser-se fadista, avançando que teve noção dessa
distinção muito cedo, “por causa do meu meio familiar e por frequentar casas de fado”,
afiança. “Quando venci a Grande Noite do Fado fez-se luz e comecei a sentir que o fado
fazia mesmo parte de mim. E quanto a achar-me fadista, reconhecendo que ele tem
raízes muito profundas dentro de mim, foi um processo longo, demorou a perceber o
peso da responsabilidade que é dar voz ao fado e isso veio das vivências mais tristes. O
fado passou a fazer parte de mim com essas experiências mais dolorosas que me
levavam a cantar. E não apenas nas casas de fado, porque eu passei a vida toda a cantar
– na minha casa, na rua, em todo o lado”.
Sara acumulou uma séria experiência que começou a ganhar contornos mais definidos
após essa primeira conquista na historicamente importante Grande Noite do Fado,
evento que tantos valores revelou e que a consagrou quando contava apenas 13 anos,
em 2006. Essa distinção numa idade-chave abriu-lhe as portas da selecta Casa de
Linhares, lugar centenário que se acredita ter sido frequentado por Luís de Camões e
cujas paredes ecoam grandes tradições. Aí escutou com reverência as “lições” de Celeste
Rodrigues, de Jorge Fernando ou Maria da Nazaré e Cidália Moreira, entre tantos
outros, captando dessa forma natural a essência de um género que sempre se transmitiu
dessa forma, íntima e pessoal. “Aprendi com todas essas pessoas”, confirma Sara, “por
estar ao lado delas, por poder ver como elas se entregavam ao fado, mas também, e
desde sempre, aprendi a ouvir as gravações da Amália Rodrigues, da Beatriz da
Conceição e do Fernando Maurício, as minhas três grandes ‘fontes’”, revela-nos.
O tempo passou e 2018 chegou revelando-se data marcante na carreira de Sara Correia:
foi nesse ano que deu voz ao clássico “Grito” de Amália Rodrigues para uso na banda
sonora da série “Une famille formidable” do realizador francês Joel Santoni e que vestiu
a pele da mítica Severa no filme “Alfama em Si” de Diogo Varela Silva.
Mas o mais importante desse ano foi o lançamento do seu homónimo álbum de estreia,
Sara Correia, trabalho que mereceu edição da Universal Music. Resultado de uma
frutuosa parceria criativa com Diogo Clemente, contou com o trinado único da guitarra
portuguesa de Ângelo Freire, que Sara descreve como “um génio desta geração”, e a
mestria amplamente reconhecida do baixista Marino de Freitas, bem como válidos
contributos de Vicky Marques na percussão e Ruben Alves no piano.
Essa aplaudida estreia, em que Sara Correia cantou as diferentes nuances do fado, a
saudade e o Tejo que banha esta Lisboa que tanto ama, arrebatou a crítica, que
imediatamente a reconheceu como importante voz de uma nova geração, e valeu-lhe
duas nomeações para os então nascentes Prémios Play – nas categorias Artista
Revelação e Melhor Álbum de Fado – além do Prémio Revelação atribuído pela Rádio
Festival. Mas, sobretudo, o álbum abriu-lhe pela primeira vez as portas do mundo
levando-a a recolher efusivos aplausos em palcos internacionais de prestígio – de
Espanha à Coreia do Sul, da Noruega a Itália, da Áustria às Ilhas Reunião e mais além.
A etapa seguinte, já em 2020, aconteceu com o lançamento de Do Coração, um álbum
especial em que partiu das fundações, da tradição, para abraçar o presente cantando
peças com assinaturas tão variadas quanto as que foram criadas por Joana Espadinha,
Carolina Deslandes, Luísa Sobral ou António Zambujo – com quem, aliás, cantou mesmo
em dueto. Diogo Clemente voltou a ser o seu produtor e cúmplice criativo. Afiança Diogo
que “a Sara é uma fadista das que nascem uma apenas em muitos anos” elaborando
depois: “Conseguir conjugar voz, poder, interpretação e um código genético fadista
requintado é muito difícil”. Sara demonstrou, obviamente, ter todas essas qualidades.
Em 2021, Sara cantou no espectáculo inaugural da Presidência Portuguesa do Conselho
da União Europeia – que decorreu no Centro Cultural de Belém – sendo acompanhada
pela Orquestra Sinfónica Portuguesa dirigida pela maestrina Joana Carneiro, e dividindo
o palco com grandes referências do fado como Camané, Carminho e Ana Moura. Em
espírito esteve igualmente Carlos do Carmo, que Sara Correia homenageou aí de forma
sentida.
Do Coração teve reconhecimento e aplausos ainda mais vincados: foi distinguido nos
Prémios Play com o galardão para “Melhor Álbum de Fado”. Os aplausos e elogios da
crítica justificaram uma reedição ampliada que recebeu o título + Do Coração, com
gravações ao vivo até aí inéditas que deixam claro que o que é capaz de fazer em estúdio
tem equivalência directa no que sabe transmitir em palco. Em paralelo com essa
extremamente bem recebida reedição, Sara viu ainda ser disponibilizado nas
plataformas de streaming o vídeo que documentou a sua aclamada passagem pelo
Festival Internacional Cervantino, um dos maiores eventos musicais da América Latina
onde teve oportunidade de dar voz a clássicos de Amália como “Alfama” ou “Fado
Português” no ano em que se assinalava o centenário do nascimento da nossa Diva. Um
triunfo.
Esse ano ainda pandémico teve muito mais: Sara juntou a sua voz ao tributo à lusofonia
“Meu Bairro, Minha Língua” criado pelo rapper brasileiro Vinicius Terra, peça em que
se cruzaram ainda Dino D’Santiago, Elza Soares e Linn da Quebrada e que serviu para
assinalar a reabertura do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, Brasil. Desse
ambicioso projecto resultou ainda uma websérie de oito episódios em que Sara teve
oportunidade de lançar luz sobre o bairro que tanto a inspirou e continua a inspirar. Uma
colaboração com o artista plástico Tony Cassanelli no âmbito da iniciativa Lisboa Criola
– de que resultaram uma escultura e um documentário – e uma participação na primeira
série portuguesa, Glória, a ser distribuída pela Netflix – um curioso cameo que
referenciava o histórico encontro entre o saxofonista de jazz americano Don Byas e
Amália Rodrigues – marcaram igualmente o seu preenchido calendário de 2021.
Foi, no entanto, a relevante nomeação para um dos mais importantes galardões que uma
artista como Sara Correia pode almejar que marcou de forma indelével o ano de 2021:
o Grammy Latino reconheceu o seu enorme talento ao juntar Do Coração à lista de
candidatos ao prémio para Melhor Álbum de Raízes Portuguesas e ao convidar Sara a
ser apresentadora na cerimónia que decorreu em Las Vegas, Estados Unidos, em
Novembro desse mesmo ano.
“Quero é Viver”, um tema original de António Variações escrito em 1983, voltou às
bocas do mundo quase quatro décadas depois quando, no arranque de 2022, a sua
interpretação na voz de Sara Correia serviu como tema do genérico da novela homónima
difundida em horário nobre na TVI e que se revelou um tremendo sucesso de audiências,
projectando ainda mais a voz da fadista que passou a ser presença nas listas de
tendências das principais plataformas de streaming. Nesse mesmo ano, foi chamada ao
palco dos Prémios Play para se apresentar ao lado de Paulo Flores, grande referência do
semba de Angola aí distinguido com o Prémio da Lusofonia.
Também em 2022, e com o mundo a assistir com o coração nas mãos à guerra na Ucrânia,
Pedro Abrunhosa chamou Sara Correia para participar em “Que o Amor te Salve nesta
Noite Escura” por ocasião do concerto solidário Uma Voz pela Paz. Bem dizia Sara que
o fado se revela na dor e esse momento demonstrou isso mesmo. A convite de Capicua
e com Jimmy P, Phoenix RDC e Stereossauro por companhia, Sara participou igualmente
num dos mais criativos projectos desse ano, a homenagem a Sérgio Godinho que
recebeu o título SG Gigante e que trouxe o reportório do celebrado cantautor para os
terrenos da modernidade hip hop.
Chegada a 2023, Sara Correia deu voz às “Bocas do Mundo” cruzando mais uma ponte
ao juntar-se ao “cantante” de flamenco Israel Fernández. Lançou dessa forma um ano
que promete muito mais. “Chelas”, primeiro dos singles do novíssimo álbum Liberdade
que sairá ainda durante o corrente ano, abre caminho a um trabalho que Sara garante
ser exactamente o que queria fazer neste momento: “tive todo o tempo do mundo para
estar em estúdio, falei muito com o Diogo sobre o que queria fazer e ele ouviu-me até
ao fim”. Este será, portanto, um álbum de afirmação em que Sara se mostra como nunca.
“Sou mesmo eu ali”, garante. Sobre “Chelas” ela esclarece que é quase como um filme
sobre as suas raízes: “a casa da minha avó, da minha mãe, o bairro onde joguei à bola.
Ver isso transformado numa canção deixa-me muito feliz”. Uma felicidade que se sente
na voz de uma fadista que o mundo já aprendeu a aplaudir: Sara Correia.
Mas o caminho não acaba. 2023 trouxe igualmente a estreia de Sara Correia como
mentora do The Voice Portugal. Primeiro no The Voice Gerações, depois no The Voice
Portugal, onde fez um percurso notável com atuações que rapidamente se tornaram
virais.
Em 2024 a fadista esgotou quatro Coliseus, três em Lisboa, a 9, 10 e 11 de março e um
no Porto, a 22 de março, tornando-se na primeira artista que, na estreia nestas que são
as mais emblemáticas e prestigiadas salas do País, consegue esta proeza, num sinal claro
de que este será o ano de Sara Correia.